Auschwitz: há 75 anos, os portões abriam-se para a liberdade
Os poucos milhares de prisioneiros que ainda (sobre)viviam no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau foram libertados a 27 de janeiro de 1945 pelas tropas soviética.
Quem não se juntou à ‘marcha da morte’, quem ainda se agarrava à vida dentro o mais mortífero campo de extermínio nazi, quem escapou às execuções aleatórias dos últimos dias foi salvo – ou pelo menos, foi libertado – há exatamente 75 anos, pelas tropas da União Soviética, que chegaram a Auschwitz-Birkenau para ver aquilo em que recusaram acreditar durante anos. Nesse dia, 7 500 prisioneiros agradeceram a chegada dos aliados e renovaram a esperança.
Hoje, o campo de concentração é um museu e um memorial que honra as memórias das cerca de um milhão de pessoas que ali morreram à mão das forças nazis, e que recebe cerca de dois milhões de visitas anualmente.
Países ocupados lideram visitas
Há mais de 10 anos que Auschwitz-Birkenau recebe um milhão ou mais de visitantes por ano. A liderar a tabela, têm estado os oriundos dos países ocupados durante a II Guerra Mundial, e também dos países onde existem grande comunidades judaicas: por ordem, Reino Unido, EUA, Itália, Espanha, Israel e França. Sem surpresa, os polacos são quem mais visita o memorial, com as entradas de cidadãos a representar 29,3% das visitas nos últimos 10 anos, segundo os dados compilados pela VISÃO. Nesta última década, mais de 17 milhões de pessoas já passaram pelo complexo criado pela máquina nazi.
O início de cada visita – geralmente são sempre acompanhadas por um guia – faz-se precisamente pelos portões que todos conhecemos dos livros de História, dos filmes, dos documentários. Aqueles que encimam o lema ‘Arbeit macht frei’, ou o trabalho liberta. O silêncio que se torna ensurdecedor à medida que se percorre cada alameda rodeada de árvores verdejantes estende-se durante toda a visita, que não dura menos do que três horas.
Restou muito pouco de Auschwitz-Birkenau – assim que se aperceberam da aproximação das tropas aliadas, as forças nazis começaram a encaminhar os prisioneiros para os campos de concentração mais a oeste (Bergen-Belsen, Dachau e Sachsenhausen, por exemplo), e a tentar destruir quaisquer evidências dos assassinatos em massa que ali aconteceram.
Mais de 1,3 milhões de pessoas terão entrado em Auschwitz. Dessas, 1,1 milhões pereceram lá dentro, a maioria das quais judeus.
Há poucas referências sobre portugueses em Auschwitz – uma reportagem do Público, há uns anos, descobriu alguns que teriam estado naquele campo, e que seriam emigrantes em países ocupados, à época. Hoje, são quase 10 mil os cidadãos portugueses que anualmente visitam o museu e memorial às vítimas do Holocausto – representam, na última década, cerca de 0,5% das visitas totais.
O número tem vindo a aumentar ao longo dos anos, tendo registado um pico em 2016 – tal como aconteceu com grande parte das nacionalidades europeias, possivelmente devido às Jornadas Mundiais da Juventude, que tiveram lugar em Cracóvia, a 60 km do campo, e que levaram milhares de pessoas, e o próprio Papa Francisco até ao memorial.
Foi também em 2016, ano em Donald Trump assumiu a presidência dos EUA, que os visitantes daquele país mais visitaram Auschwitz-Birkenau, tendo-se registado um aumento de cerca de 65% em relação ao ano anterior. Os norte-americanos representaram, aliás, na última década 6,8% do total das visitas ao museu, com mais de 100 mil pessoas a entrar por aqueles portões, todos os anos.
Entre 2008 e 2018, cerca de 808 mil alemães visitaram o complexo alemão na Polónia – representam 4,7% das visitas totais da década. Angela Merkel, atual chanceler da Alemanha, foi pela primeira vez ao campo de Auschwitz apenas em 2019. Na ocasião, doou 60 milhões de euros para ajudar na conservação do memorial. A responsável, que tem sido uma das principais vozes a lutar contra o anti-semitismo e que se destacou pela abertura das portas alemãs durante a crise dos refugiados, em 2015, afirmou sentir “uma profunda vergonha pelos crimes bárbaros cometidos pelos alemães”.
Sobreviver em Auschwitz
Os relatos sobre o que aconteceu em Auschwitz-Birkenau são imensos e sobejamente conhecidos: os prisioneiros chegavam, eram selecionados para trabalhar no campo ou ser enviados diretamente para a morte (destino mais provável de idosos, crianças, grávidas e doentes); os que se queriam a trabalhar por lá eram despidos, os cabelos rapados, e todos foram despojados dos seus bens. Era-lhes entregue uma farda leve e áspera, que tinham que envergar durante inverno e verão, dormiam em camaratas sobrelotadas, comiam apenas uma refeição por dia – composta por um litro de água com um pouco de gordura e um pedaço de pão.
O que se encontra hoje, quando se visitam as antigas camaratas dos prisioneiros, são todos os objetos de que os soldados alemães não se conseguiram desfazer a tempo: toneladas de cabelo humano (geralmente usado para fazer tecidos usados pela alta sociedade germânica); milhares de sapatos, de óculos, roupas de crianças. Visitar o “lugar mais mortífero da terra” é uma verdadeira viagem pela História e também pelo espírito humanos. Como escreveria Primo Levi, talvez o mais famoso sobrevivente do Holocausto, “existem monstros, mas são demasiado poucos, em número, para serem realmente perigosos. Mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos a acreditar e a agir sem fazer perguntas”.
Estima-se que cerca de seis mil soldados alemães trabalhassem no complexo de Auschwitz, onde se levaram a cabo experiências médicas macabras, e onde se mataram pessoas sem qualquer razão aparente. Os que não foram executados morriam de fome, ou de frio, ou de uma qualquer doença que rapidamente se tornava letal num ambiente sem quaisquer condições que promovessem a dignidade humana.
Quando as forças aliadas chegaram ao enorme complexo de Auschwitz, as cinco câmaras de gás de Birkenau tinham sido destruídas, tal como a maior parte dos pavilhões e o laboratório gerido por Josef Mengele. Os sobreviventes que receberam os soldados soviéticos estavam, muitos deles, às portas da morte – alguns não conseguiram resistir, mesmo com a ajuda das organizações humanitárias que rapidamente os receberam e trataram, tal a debilidade em que se encontravam.
Hoje, a organização que gere o Museu e o Memorial de Auschwitz-Birkenau faz questão de manter viva a memória do que se passou no maior campo de extermínio construído pelas forças alemãs. Fazem-se exposições temporárias, garante-se que tudo o que foi encontrado então está em perfeitas condições de conservação, e é mostrado a todos os visitantes, exige-se silêncio e que se pense sobre o que ali aconteceu. “Para que a tragédia não se repita”, repetem os guias, a espaços.
Com o número de sobreviventes do Holocausto a reduzir-se drasticamente devido ao passar do tempo, restam agora os seus relatos escritos, as imagens que perduram na memória e as visitas guiadas por pessoas que fazem questão de lembrar todos os que ali passam que a liberdade é um bem efémero.
Numa altura em que os movimentos de extrema-direita ganham força na Europa, recordar o Holocausto é recordar, também, quão fácil foi para o regime nazi exterminar mais de um milhão de pessoas com a conivência de militares, civis e governos internacionais que, não querendo acreditar nos relatos que lhes chegavam, preferiram ignorar durante anos que havia uma máquina de extermínio a funcionar.
Ou, como diria Edith Eva Eger, uma sobrevivente de Auschwitz, “o único lugar onde podemos exercer a nossa liberdade de escolha é no presente”.
Fonte: Revista Visão Online, Margarida Vaqueiro Lopes (jornalista)
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