Hoje assumimos que, à nossa volta, a imensa maioria das pessoas lê e escreve. Tal como a informática, a escrita foi o início de um espaço dedicado apenas a alguns especialistas. Sucessivas simplificações permitiram que milhões de pessoas utilizassem ferramentas na sua vida quotidiana. Para esta progressão -, que no caso dos computadores, se verificou em apenas umas décadas -, foram necessários milhares de anos na história da escrita. (…)
Há seis mil anos, apareceram os primeiros sinais escritos na Mesopotâmia, mas a origem desta invenção está envolta em silêncio e em mistério. Algum tempo depois, e de forma independente, a escrita também nasceu no Egito, na Índia e na China. A arte da escrita teve, segundo as teorias mais recentes, uma origem prática: as listas de propriedades. Estas hipóteses afirmam que os nossos antepassados aprenderam o cálculo antes das letras. A escrita veio resolver um problema de proprietários ricos e administradores palacianos, que precisavam de fazer anotações porque lhes era difícil organizar a contabilidade de forma oral. O momento de transcrever legendas e relatos chegaria depois. Somos seres económicos e simbólicos. Começamos a escrever inventários, e depois invenções (primeiro as contas; de seguida, as histórias).
Os primeiros apontamentos eram desenhos esquemáticos (uma cabeça de boi, uma árvore, um jarro de azeite, um homem pequeno). Com esses traços, os antigos latifundiários inventariam os seus rebanhos, os seus bosques, a sua despensa e os seus escravos. (…) Os desenhos tinham de ser simples, e sempre os mesmos, para que se pudesse aprender e decifrar. O passo seguinte foi desenhar ideias abstratas. (…) Gosto de imaginar os nossos ancestrais a saborearem a excitação de expressarem os seus pensamentos pela primeira vez; quando descobriram que o amor, o ódio, o terror, o desalento e a esperança se podiam escrever.
Equacionou-se de imediato um problema: são necessários demasiados desenhos para dar conta do mundo exterior e interior. (…) O número de sinais não parava de aumentar, sobrecarregando a memória. A solução foi uma das maiores genialidades humanas, original, simples e de incalculáveis consequências: deixar de desenhar as coisas e as ideias, que são infinitas, para começar a desenhar os sons das palavras, que são um repertório limitado. Assim, através de sucessivas simplificações chegaram às letras. Combinando letras conseguimos a mais perfeita partitura da linguagem, e a mais duradoura. Mas as letras nunca deixaram para trás o seu passado de desenhos esquemáticos. O nosso “D” representava originalmente uma porta, o “M” o movimento da água, o “N” era uma serpente e o “O” um olho. Ainda hoje em dia, os nossos textos são paisagens, onde pintamos – sem sabê-lo – a ondulação do mar, onde espreitam perigosos animais e olhares que não pestanejam”.
Irene Vallejo “O Infinito num Junco”
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